segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Crónica - Cinema

Cinema

Ontem regressei de férias, que já não são na Praia das Maçãs, voltaram há muitos anos a ser em Porto Covo, onde em pequena só existiam três ruas e o largo. Agora ao chegar a este destino não reconheço as ruas e as casas que estão à venda, novas, sem arquitectura que lhes valha, ou umas almitas perdidas para as habitarem em quinzenas apressadas, a usar o VISA sem plafond num desejo de ser aquilo que não se é, ou não se consegue. Tal como eu, que não consigo que estes locais de memórias perdidas voltem a ser meus. Porque agora já não consigo andar de olhos fechados nem aqui, nem na Praia das Maçãs, nem em casa, nem no cinema onde está sempre escuro e conseguimos viajar pelos sonhos e deslumbrarmo-nos com amores impossíveis, beijos escaldantes, cowboys, países em que nunca vivi mas que são ainda (hoje) palcos do meu passado.

Houve aquele dia em que o irmão do João, rapaz mais velho e a quem eu achava imensa piada, convidou-me para ir com ele ao cinema. Eu tinha uns 9 ou 10 anos talvez, e o António nos seus profundos olhos azuis e na sua magreza de rapaz, muito sério, era muito mais velho do que eu e muito menos bonito que o irmão. Mas não importava. Achei-me tão especial nesse dia, tinha sido convidada para ir ao cinema com um homem mais velho, muito mais velho. Existem idades em que a diferença entre a quarta classe e o liceu são abismos, barreiras, muros como os que nos separavam dos rapazes na escola primária que ficara para trás e onde nunca pude usar nada para além da saia, nem borrar a caligrafia com a tinta excessiva do aparo, nem queixar-me das reguadas por não saber apontar no mapa do Portugal Ultramarino onde ficava Nova Lisboa.

Partilhei com a minha irmã num desabafo espontâneo, em modo de ensaio, de encorajamento para pedir permissão à mãe, porque ao pai nunca, e os manos não podiam sequer desconfiar. O olhar invejoso dela apagou-se com o sim tardio da mãe, que não achava nada bem uma saída só com esse rapaz. Hoje vemos crianças abraçadas e aos beijos, naqueles dias nem um casal, não eram bem visto ou sequer possível. Tinha de ser de outra maneira... Agora é diferente, é tudo mais rápido, mais explosivo, é a paixão, é o desejo, é o exibicionismo de corpos que flutuam na sua juventude que ainda não conhece limites. Mas também não era isso que eu queria nesse dia. Era ser maior, era o privilégio de ir ao cinema acompanhada por um cavalheiro. Sim porque, lembro-me como se fosse hoje, ele levou um jornal debaixo do braço para eu me poder sentar no chão e com o outro braço deu-me a mão até á rua do Cinema Ideal talvez, no Chiado. Não. Sei que era num barracão e nós estávamos sentados no chão e vimos um filme, que não me lembro, encolhidos um no outro entre o fumo dos cigarros e o nervosismo deste namoro tímido e quase inocente. Ele menos, ou mesmo nada. Talvez ele me tivesse feito uma festinha ali no cinema, ternuras e romantismos sem direito às opções: Sim, Não, Talvez.

A tela ficou preta, as letras pequenas invadiram-na, e nós só tivemos esse dia, aquela tarde. Terminou. Caminhámos por Lisboa no silêncio que só a cumplicidade permite. Uma estória de amor que se esvaneceu no tempo, porque a porta do prédio já estava perto e era hora de jantar.

Agora sentada no sofá sei que já não és médico, porque escreves, e ao ler-te sei que não podíamos ter feito de maneira diferente.

-O jantar está na mesa!


Joana Sapinho

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